Algumas crianças demoram para começar a falar. Outras começam a falar na idade esperada, mas seguem falando poucas palavras, ou apresentam trocas de sons, ou não chegam a construir frases.
Embora problemas sejam percebidos na fala, nem toda queixa indica realmente um déficit na fala.
Problemas de fala e de linguagem não são a mesma coisa e merecem cuidados diferentes.
A avaliação com profissional especializado pode detectar se as queixas de problemas de comunicação limitam-se à fala, à linguagem oral ou ambas. É a partir deste detalhamento que se levantam hipóteses diagnósticas fonoaudiológicas assertivas, complementando avaliações em outras áreas como a psicologia, psiquiatria, neuropediatria, otorrinolaringologia e ortodontia. Tratar um problema de comunicação sem entender se este é na fala ou na linguagem pode levar a anos de tratamento inadequado e resultados frustrantes.
A linguagem é um sistema de símbolos convencionais utilizados para organizar o pensamento e para a comunicação. Envolve compreender o que o outro diz, elaborar conteúdos e expressar ideias e necessidades verbalmente. Quando a linguagem se manifesta por meio da fala, chamamos de linguagem oral; quando ocorre por meio da leitura e da escrita, nos referimos à linguagem escrita.
A fala é a forma como produzimos os sons e as palavras, que envolve a movimentação de lábios, língua e bochechas, o uso do trato vocal para emissão do som e o ritmo com que conduzimos nossos discursos.
O processamento da linguagem é complexo e abrange níveis como decodificação, armazenamento, acesso, evocação e planejamento, ou seja: entender palavras ditas pelos outros, estocar sons/palavras/significados, encontrar estes itens quando deseja falar, colocá-los em frases coerentes. Simultaneamente são processadas características referentes à expressão facial e corporal, contato de olho, ritmo e decisão se a informação será passada literalmente ou de forma implícita. Enquanto tudo isto é preparado, ocorre o planejamento para a fala (movimentação do trato vocal, boca, lábios, língua, etc) e a mensagem é expressa.
Um exemplo simples: ao dizer “este trabalho é gratificante”, o falante “buscou” em sua memória os sons e as palavras, colocou estas palavras em ordem, articulou os sons mantendo ritmo e usou uma entonação para dizer que o trabalho realmente é gratificante, ou entonação diferente para dizer a mesma frase com ironia, com objetivo de mostrar o contrário.
Para chegar a esta condição, a criança passa pelo desenvolvimento da intencionalidade (preciso me comunicar), da aquisição dos sons, formação e expansão de vocabulário, aquisição de itens gramaticais e construção de frases, desenvolvimento do planejamento e execução motora e o refinamento de aspectos mais sofisticados como ironia.
A linguagem abrange domínios, estudados e avaliados, para levar à hipótese diagnóstica e conduta terapêutica mais precisas. São elas:
- Pragmática – habilidades para comunicar-se por meio verbal e não verbal. Começa com o choro comunicando fome e dor, com o sorriso manifestando prazer, os gritos chamando por alguém, o dedinho apontando e pedindo água. Expressões faciais, movimentos corporais, gestos e palavras são associados à fala.
- Fonologia – dizem respeito às regras de organização dos sons. Antes mesmo de falar, a criança já discrimina muitos sons, vai formando representações destes na memória e com o desenvolvimento, estas representações são utilizadas no planejamento e na execução da fala.
- Semântica – referem-se aos significados e características das palavras. Primeiro, “au au” é falado para todos os animais e, com a experiência, cada animal passa a ter seu nome correto e até suas raças definidas. Conforme o conhecimento se armazena, nomes novos e mais específicos são usados para identifica-los.
- Morfologia – estuda como as palavras são modificadas. No início, as crianças podem falar “meu chupeta”, mas vai aprimorando o uso de plural, feminino/masculino, conjugação verbal etc.
- Sintaxe – são as regras que governam as palavras e orações. É possível uma criança pequena compreender “Coloque a bola aqui”, mas não executar “Após guardar todos os brinquedos na caixa à esquerda, coloque a bola aqui, senão não teremos mais atividade hoje”, pois a última instrução é mais longa e contém itens gramaticais que a criança pode não dominar.
Sabe-se que a genética e o ambiente interagem e influenciam o curso do desenvolvimento infantil. Histórico de familiares com transtornos de linguagem, fala e aprendizagem devem ser considerados.
A estimulação do ambiente, como qualidade da interação dos adultos com a criança e disponibilidade de materiais linguísticos como brinquedos, livros e gibis, por exemplo, têm influência importante no desenvolvimento da linguagem.
O uso de tablets e celulares pode ser prejudicial porque não propicia interação da criança, mas sobretudo porque diminui o tempo que a criança se engaja em brincadeiras ricas e em momentos de interação com o adulto.
O conselho federal e os conselhos regionais de Fonoaudiologia elaboraram um guia de desenvolvimento da linguagem, abarcando as principais conquistas em cada faixa etária.
A avaliação, quando necessária, vai muito além destes marcos, com detalhamento de cada domínio da linguagem.
A seguir, apresentaremos aquisições esperadas em cada faixa etária. O objetivo é fornecer informações para observação do desenvolvimento e não para diagnóstico. Lembramos que existem diferenças individuais e qualquer dúvida deve ser resolvida com profissional especializado.
Criança de 1 a 4 meses:
- Assusta-se com sons altos
- Associa os rostos às vozes dos familiares
- Reage com choro e risos à voz humana
- Vocaliza e emite sons guturais
- Gritos mudam para diferentes necessidades
- Repete sons que lhe agrada
Criança de 4 a 8 meses:
- As ações passam a ser intencionais e as atividades reproduzidas pelos resultados obtidos nos objetos
- Move os olhos na direção dos sons
- Presta atenção em música
- Nota barulho dos brinquedos e repete a ação para ouvir novamente
- Balbucio – produção de ma, pa, mi
- Olham os lábios do adulto (e logo vão associando aos sons que ouvem)
- Maior intenção e poder comunicativo
Criança de 8 a 12 meses:
- Vira e olha na direção dos sons
- Olha para algo que o adulto apontou
- Olha quando chamam seu nome
- Modula a voz em alto e baixo
- Entende palavras referentes a objetos e pessoas do cotidiano
- Reage a frases simples como “não”, “tchau”, “vem aqui”
- O balbucio contém longas sequência de sílabas, como “mamama’, “papapa”
- Usa sons e gestos para chamar a atenção
- Dá tchau e balança a cabeça
- Imita sons próprios ou sons que ouve
- Podem falar algumas palavras, embora com sons não muito claros
Criança de 1 ano
- Gosta de ouvir sons e ritmos diferentes
- Conhece o nome de coisas familiares
- Ouve histórias simples, músicas e rimas
- Entende instruções simples com uma ação como “Pegue o seu sapato”
- Reage a perguntas simples como “Quem é esse?” e “Onde está seu brinquedo?
- Mostra seus objetos para ganhar atenção
- Usa uma palavra como frase como “maçã” para solicitar “quero mais maçã”
- Pode usar frases de duas palavras, como “mais maçã”, “sem cama” e “livro da mamãe
- Faz perguntas usando uma palavra e gesto, para expressar “O que é isso?”, “Quem é esse?”, e “Onde está o gatinho?”
- É capaz de produzir os sons /p/ e /m/
- Tem interesse em olhar figuras nos livros
Criança de 2 anos:
- Adquire rapidamente novas palavras
- Entende opostos como grande/pequeno
- Compreende instruções com duas ações como “pegue o tênis e coloque na mesa”
- Usa uma palavra para quase tudo
- Fala sobre coisas que não estão no seu campo de visão
- Combina duas ou três palavras para falar e pedir coisas.
- Faz perguntas simples usando “por que”
- Produz os sons /b/, /t/, /d/, /n/ e depois os sons /k/, /g/ e /nh/
- Pode ser compreendido por adultos familiares na maioria das vezes.
Criança de 3 anos:
- Entende instruções contendo três palavras-chave
- Entende nomes de algumas cores, formas e membros da família
- Responde a perguntas envolvendo “quem”, “o que” e “onde”
- Pode combinar três ou mais palavras em uma frase
- Faz perguntas usando “quando” e “como”
- Forma frases com elementos na ordem correta (quem faz o que a quem)
- Usa aspectos morfológicos (plural, gênero, concordância)
- Usa pronomes como “eu”, “você”, “ele”
- Faz os sons /f/, /v/, /s/, /z/ e depois os sons /ch/ e /j/
- Faz jogos imaginativos (brinca de boneca, de carrinho, faz compra)
- Pode falar sobre coisas que não estão presentes
- Conta o que aconteceu no dia
- Interessa-se por brincadeiras de outras crianças
- Pode ser entendido por adultos desconhecidos na maioria das vezes.
Criança de 4 anos:
- Entende palavras como “primeiro”, “próximo” e “último”
- Entende palavras como “hoje”, “ontem” e “amanhã”
- Consegue seguir instruções mais longas como “pegue o lápis, faça uma bola e pinte”
- Compreende grande parte do que ouve na escola e em casa
- Faz muitas perguntas de ‘o quê’, ‘onde’ e ‘por quê’ para descobrir novas informações
- Aumenta o uso de adjetivos, advérbios e pronomes
- Começa a aquisição das curvas melódicas
- Produz os sons /l/, /lh/ e /R/ (de Rato)
- Conta histórias curtas
- Mantém conversação
- Fala de forma diferente com criança e com adulto
- Modula intensidade da voz de acordo com seu objetivo
- Começa a usar a fala para fazer amigos e resolver problemas
- Pode falar sobre o que está fazendo e o que pode fazer
- Pode ser entendido por adultos não familiares o tempo todo
- Reconhece seu próprio nome escrito
- Conhece algumas letras dos nomes
- Pode reconhecer algumas palavras escritas no ambiente
- Tenta escrever o nome
Criança de 5 anos:
- Tem um amplo vocabulário de substantivos e verbos
- Ouve e compreende histórias
- Coloca figuras em sequência para contar uma história
- Pode recontar história simples
- Pode descrever e perguntar sobre uma figura
- Conta sobre eventos recentes com detalhes
- Usa gramatica corretamente para falar sobre passado, presente e futuro
- Faz perguntas usando várias formas de questões
- Adquire os sons /r/ (como em arara) e os encontros consonantais com /r/ e /l/
- Fala durante brincadeiras com os outros, faz perguntas e comentários
- Consegue trocar turnos em uma conversação
Criança de 6 anos
- Entende e usa muitos conceitos
- Pode lembrar instruções com três a cinco ações
- Segue conversa com facilidade na sala de aula
- Usa verbos como “poderia” e “deveria” para expressar possibilidades ou incerteza
- Conta e reconta histórias que fazem sentido
- Pode falar sobre seus próprios sentimentos e necessidades
- Fala para esclarecer ideias
- Pergunta para entender causas simples e efeitos
- Narra com eventos conectados cronologicamente
- Dá instruções
- Inicia a conversação
- Diz palavras que rimam
Criança de 7 e 8 anos:
- pode seguir um conjunto de instruções que requerem seis ou mais respostas
- gosta de humor na fala e brincadeira com palavras
- usa fala e características não-verbais para transmitir pensamentos e sentimentos
- faz perguntas apropriadas
- pode seguir histórias mais longas
- participa bem de trabalho em grupo
- pode se adaptar a diferentes funções dentro de um grupo
Há diferenças entre as crianças quanto à idade de aquisição e desenvolvimento da linguagem. Porém, observa-se uma sequência na aquisição dos domínios e marcos importantes em cada faixa etária. Esperar “o tempo de cada criança”, ou tratá-la como “preguiçosa” são atitudes que devem ser evitadas. Em caso de dúvidas, consulte um profissional especializado, esclareça suas observações e receba orientações para cuidados e estimulação.
Fontes consultadas:
http://seonline.tki.org.nz/Educator-tools/Much-More-than-Words
https://www.asha.org/public/speech/development/
Bee, H. (1996). A criança em desenvolvimento. Porto Alegre: Artes Médicas.
Luciene Stivanin
Fonoaudióloga
CRFa 2-14385
• Fonoaudióloga USP
• Doutorado em Ciências da Reabilitação USP
• Pós Doutorado na área de Fonoaudiologia Educacional USP
• Atuação em linguagem, aprendizagem e cognição